O Mau Leitor
O mau leitor começa a ler um conto intitulado O mau leitor e julga, a príncipio, tratar-se da história de uma personagem fictícia chamada “o mau leitor”. Só depois da primeira frase é que o mau leitor se apercebe que o conto talvez esteja dirigido simplesmente ao leitor que, agora mesmo, lê estas palavras. De que forma pode um leitor ser considerado mau? Antes, que leitor não é por vezes um mau leitor?
O mau leitor consegue lembrar-se de pelo menos um exemplo de ter sido mau, de ter visto “É uma hora” quando, na realidade, a frase dizia “É uma nora”. O mau leitor recorda-se de não ter apanhado aquela pista que todos parecem ter descoberto na história policial. Ou talvez o mau leitor não se recorde de nenhuma ocorrência de má leitura, sendo que, nesse caso, o leitor tem memória fraca ou uma imaginação pobre. Há mais do que uma forma de se ser mau leitor.
Nesta altura da história, o mau leitor começa a ofender-se com o escritor. Decerto haverá algum princípio da escrita que este conto viola. Um escritor que insulta o seu leitor só pode ser parvo. Os leitores não querem insultos. Um mau leitor, um que não seja suficientemente astuto para detectar o objectivo da história, é capaz de se enervar bastante ao ser insultado. O mau leitor é capaz de achar que um conto intitulado O mau leitor não é nada um conto, mas um acto de vingança. O mau leitor é capaz de achar que o preguiçoso do escritor o ataca em vez de se dar ao trabalho de escrever um conto a sério.
Na realidade, é igualmente provável que o leitor ache muita graça ao texto. Eis a que ponto é mau este leitor. Eis a que ponto pode ao mau leitor escapar o sentido da coisa.
Perto do final, o mau leitor chega a uma frase animadora: “O mau leitor lê na divisão mais pequena da casa.”
Ora, quem não lê na divisão mais pequena da casa? Mas o mau leitor pensa, Não sou o mau leitor descrito no conto. Também leio noutras divisões!
O mau leitor experimenta uma sensação de tranquilidade. Uma sensação enganadora.
O mau leitor, tendo terminado a leitura do conto, não voltará a pensar nele. Ou, pior, continuará a pensar no conto sem lhe discernir o verdadeiro e subtil significado.
© Bruce Holland Rogers (texto)
© Luís Rodrigues (tradução)
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«É bem sabido, por exemplo, que as condições da leitura literária são incompatíveis com uma precisão excessiva da linguagem. Da linguagem vulgar o intelecto exigiria de bom grado perfeições e purezas que lhe transcendem os poderes. Mas raros são os leitores que não precisem de estar absorvidos para sentirem prazer.» Paul Valéry, “O Senhor Teste”